domingo, 24 de maio de 2009

Clariciana II


Despiu-se e foi para a vida. Lêdo engano pensar que era especial, que era diferente. Sua alma de mulher enganava-lhe e era como se precisasse disso para seguir e então mentia para si mesma e essa era a pior mentira que já contara. Vivia cada dia como se fosse o último, dormir era perda de tempo, do tempo precioso que a levava para dentro de si. Os dias emendavam-se às noites e o espelho lhe mostrava fundas olheiras. Seu rosto já marcado pelo peso dos dias intermináveis, das noites insones, lhe era estranho muitas vezes. A vida enchia-se de sentido mas o corpo cobrava a alma. O que fazer desse dilema onde a resposta à charada era clara e ao mesmo tempo obscura? Devaneava sonhando sóis em meio ao gelo da neve que carregava dentro de si. Chorava e gargalhava diante de cada nova descoberta. O mundo parecia-lhe agora maior e sentia-se à sua altura quando conseguia entrar em contato. Temia o fim da tênue camada que muitas vezes se rompia. Era um mundo externo onde derramava seu pranto interno, seu pranto eterno. As luzes da cidade já não clareavam mais que a tocha que carregava dentro de si. Já poderia sentir sem precisar fugir. Já poderia crescer sem precisar partir-se. Já poderia dormir sem precisar iludir-se. Já poderia partir sem precisar ferir-se. Parecia-lhe que entrava para dentro de si descortinando um mar de possibilidades mas as escolhas já não lhe assustavam tanto quanto antes. Sentia orgulho de ser quem era e sentia ainda que era necessário doar-se sempre. Descobrira que perdera tempo demais tentando explicar que não precisava explicar nada pra ninguém. Perdera tempo moldando as máscaras que supostamente fariam com que fosse aprovada, amada, aceita. Perdera dias, meses, anos tentando ser igual. Não era. Nunca haveria de ser. Esse mundo não era dela, ela não habitava mas apenas habituava-se. Cansada de tanta volta para chegar ao mesmo lugar de sempre, muitas vezes estagnava-se. Mas tudo isso era passado pois a vida lá fora agora era vasta demais e não cabia dentro de si. Despiu-se e foi para a vida, a verdadeira vida.

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